quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Aziz Nacib Ab’Sáber - Opinião divergente


Aziz Nacib Ab’Sáber - Opinião divergente


Aziz Nacib Ab'Saber tem cerca de 300 artigos publicados, escreveu oito livros e deu aulas em várias universidades
Desde que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) divulgou seu terceiro relatório, em maio, as discussões sobre o aquecimento global pegaram fogo. Alguns cientistas afirmaram que o painel da ONU foi cauteloso demais – o futuro do planeta pode ser ainda mais sombrio. Outros discordam dessas conclusões e advogam contra o exagero e o alarmismo. Nesse time joga o geógrafo brasileiroAzizNacib Ab’Sáber. “É claro que não nego o aquecimento global. Mas há muito desconhecimento sobre como suas conseqüências podem afetar o Brasil”, adverte ele. Formado em geografia pela USP em 1944, especialista em geomorfologia e considerado um dos mais importantes ambientalistas do país, o professorAzizconhece como poucos a paisagem natural do Brasil e suas relações com o clima. Às vésperas de completar 83 anos, tem cerca de 300 artigos publicados, escreveu oito livros, deu aulas em várias universidades e, entre outros cargos na academia, foi presidente executivo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) entre 1994 e 1995. Mesmo aposentado, todas as noites comparece ao Instituto de Estudos Avançados da USP, onde é professor honorário, e vibra como um pesquisador iniciante ao mostrar mapas e imagens do Nordeste feitas por satélite.

Por que o senhor afirma que o aquecimento global não destruirá a Amazônia nem a mata Atlântica?

Houve muito alarmismo nessa questão. Embora algumas afirmações tenham sido feitas por bons cientistas,muitas conclusões foram divulgadas de forma equivocada. Logo me irritou a afirmação de que a Amazônia desaparecerá e o cerrado tomará conta de tudo. Como há décadas estudo o problema dasflutuações climáticas e o jogo do posicionamento parcial dos grandes domínios geográficos brasileiros, senti-me ofendido culturalmente. Não havia ciência na afirmação.

Sua teoria envolve uma mudança fundamental nas correntes marítimas, certo?

Em nosso litoral existe a chamada corrente tropical sulbrasileira. É uma corrente de águas quentes que desce desde o Nordeste oriental até o sudeste de Santa Catarina. Essa corrente tem um contrafluxo representado pela corrente das Malvinas, ou Falklands, que vem da Argentina, é composta de águas muito frias e segue quase até o Rio Grande do Sul. Uma das conseqüências do aquecimento global é que essa corrente tropical sul-brasileira ficará mais larga, ocupará uma área mais afastada da costa e irá avançar mais para o sul do Brasil sobre a corrente fria. Portanto, essa corrente quente levará mais calor para as regiões localizadas entre a Argentina, o Uruguai e o Rio Grande do Sul, que hoje vivem um conflito entre águas frias e quentes. Com essa massa de água quente que chegará, a evaporação será mais intensa. Podemos deduzir que vai haver maior penetração de umidade no continente.

O que isso significará?

Com maior umidade, choverá mais. Por isso, nesse caso o aquecimento global não representará um aspecto negativo do ponto de vista da climatologia da fachada atlântica do Brasil. Portanto, não se pode dizer que a mata Atlântica será atingida por ele. Ao contrário. A tendência é que tanto a mata Atlântica como a Amazônia cresçam, e não que sejam reduzidas. Isso já aconteceu antigamente, num período entre 6 mil e 5 mil anos atrás chamado de optimum climático.Naquela época também houve um aquecimento do planeta, mas foi natural, e não causado pelo acúmulo dos gases na atmosfera, como hoje.

O que houve naquela época?

Entre 20 mil e 12 mil anos atrás, o planeta passou por um período de glaciação. Devido ao congelamento de águas marinhas nos pólos Norte e Sul, o nível dos oceanos era cerca de 90 metros mais baixo do que o registrado hoje. Depois disso, por volta de 11 mil anos atrás, houve um período de transição entre um clima frio e um mais ameno e ocorreu um ligeiro aquecimento da Terra. O frio intenso deu lugar a um clima mais tropical, como ocorria antes da glaciação. Com isso, as grandes manchas florestais, que haviam ficado distantes umas das outras naquele clima frio e seco, cresceram e se emendaram. A esse processo, que aconteceu principalmente na costa brasileira, eu dei o nome de retropicalização.

E o que aconteceu depois?

O planeta continuou a esquentar, embora houvesse variações de temperatura para cima ou para baixo. Com isso, boa parte do gelo que estava concentrado nas regiões polares se derreteu. O auge desse aquecimento se deu entre 5 mil e 6 mil atrás, no optimum climático. O aquecimento foi tal que o nível dos oceanos se elevou cerca de 2,90 metros acima do registrado hoje. Em minha interpretação, quando o mar subiu em conseqüência daquele aquecimento do planeta, ele trouxe mais umidade para dentro do continente.Houve mais chuvas, o que favoreceu a continuidade das florestas. O optimum é uma fase da história climática do mundo que vários cientistas e o próprio IPCC não consideraram. Como naquele período nem a mata Atlântica nem a Amazônia desapareceram do mapa, não é certo dizer que até 2100 a Amazônia vai virar cerrado. O problema não é o que acontecerá daqui a 90 anos, e sim o que ocorre hoje.

Por quê?

A região amazônica tem 4 milhões de quilômetros quadrados e, em menos de 25 anos, perdeu 500 mil quilômetros quadrados de florestas. Isso significa que uma área equivalente a duas vezes o estado de São Paulo já foi destruída. É muita coisa. Ou seja, hoje a Amazônia está tendo problemas de savanização devido à ação antrópica. Ocorrem desmatamentos ao longo das rodovias, dentro das selvas e junto das chamadas espinhelas de peixe, nome que os amazônidas dão aos imensos quarteirões ocupados por especuladores, os quais se mudaram de lá e venderam pedaços da mata a pessoas de muito longe que imaginaram ter uma fazendinha na região. Depois, essas pessoas liberaram as terras para os madeireiros, que arrasaram com tudo.

O senhor tem alguma outra divergência em relação ao que foi divulgado sobre o aquecimento global?

Sim. Uma coisa é o aquecimento global, outra é sua continuidade ou não ao longo dos anos. Os cientistas dizem que vai ser sempre assim. O planeta ficará cada vez mais quente. Com isso, o calor provocará mais derretimento de geleiras, o que aumentará ainda mais o nível do mar. E assim sucessivamente. Esse raciocínio é muito simplista. Não temos comosabernos próximos anos como o mar vai subir. Portanto, também não temos como avaliar quanto ele irá se elevar daqui a 100 ou 200 anos.Nesse período os continentes podem até abaixar mais e as águas do mar, inundar zonas costeiras bem maiores. Ou o contrário. Eles podem subir, como ocorreu depois do Plioceno. E com isso o mar irá recuar.Didaticamente, eu fiz os cálculos para dez, 50 e 100 anos. Depois parei.Ainda há a questão das diferenças entre as marés baixa e alta. Na costa do Maranhão, por exemplo, essa diferença é de 8 metros. Tudo isso não foi considerado.

Mas não se pode negar que uma das piores conseqüências do aquecimento global será o aumento do nível das águas do mar.

A ascensão do nível das águas dos oceanos provocada pelo derretimento das geleiras polares e das geleiras das altas montanhas vai criar graves problemas na zona costeira do Brasil. São 8 mil quilômetros de litoral. A água deverá invadir diversas cidades litorâneas, como Santos, Rio de Janeiro e Recife, entre outras, criando mini-Venezas. Será preciso fazer pontes e diques na frente das praias e nas margens dos rios. A água vai também tomar conta das barras dos rios e alagar planícies rasas e manguezais, com prejuízos ambientais e econômicos.

O que o senhor sugere, diante do problema atual?

Disso tudo eu tirei uma conclusão. Primeiro, é preciso reduzir a emissão de gases particulados na atmosfera para mitigar o efeito estufa. Que fique bem claro que eu não discuto o aquecimento global. Depois, devem-se acompanhar os fatos ao longo de um certo espaço de tempo para avaliar todas as variações. A seguir, é fundamental um bom planejamento para evitar maiores conseqüências sobre as regiões costeiras, que serão as áreas mais atingidas. O extremo sul do Brasil, por exemplo, vai ser pouco afetado, já que, com a suspensão das águas, deve acontecer o que ocorreu durante o optimum climático. A corrente marítima quente irá descer mais para o sul, levando maior umidade e, conseqüentemente, mais chuva para o interior do território.

Em junho, iniciaram-se as obras da transposição das águas do rio São Francisco, em Cabrobó, em Pernambuco. O senhor crê que ela vai matar a sede da população do Nordeste seco?

Fala-se que essa obra beneficiará cerca de 12 milhões de pessoas. Não acredito. Ela vai beneficiar principalmente os pecuaristas. O mais triste é que os donos das fazendas nem moram lá, mas sim em capitais como Fortaleza e Recife. A região do São Francisco é muito complexa.No Nordeste chove muito no verão e pouco no inverno, embora digam o contrário. É evidente que o Nordeste seco vai precisar de mais água quando o rio São Francisco, que passa em grande parte pelo cerrado de Minas Gerais e da Bahia, estiver mais baixo. Será justamente nessa época que o rio precisará jogar mais água para os eixos norte e leste que serão construídos até ela cair no açude de Orós. Aí surge um problema. As águas do São Francisco são poluídas e vão se encontrar com águas salinizadas do próprio açude. Ou seja, nessa época será preciso fazer uma transposição de águas maior do que a planejada.

Como assim?

Quem é a favor da transposição diz que o rio vai perder apenas 1,4% de suas águas após o término das obras.Mas é claro que no futuro essa porcentagem deve aumentar. Ou seja, serão transferidas mais águas do rio para os futuros eixos que vão ser construídos. Outro problema será manter as usinas hidrelétricas de Paulo Afonso, Itaparica e Xingó funcionando. Então, a época em que o rio receberá menos água vai ser a mesma em que ele deverá enviar águas para além da chapada do Araripe. Isso é um contra-senso, pois, quando estivesse chovendo lá, não seria preciso enviar água para a mesma região.

Quais são os impactos ambientais que a transposição pode causar?

Talvez o principal seja a poluição das águas. Vários afluentes do São Francisco vêm de Belo Horizonte, uma das maiores cidades do Brasil, e passam pela região industrial sidero-metalúrgica. Um deles é o rio das Velhas, por exemplo.O São Francisco tem 2170 quilômetros de extensão. Imagine a poluição que ele carrega nessa distância. Técnicos disseram que iam revitalizá-lo antes de fazer a transposição.Outro erro, pois não se pensou naqueles que têm só as margens do rio para plantar, como na zona semiárida das cidades de Ibotirama, Barra e Xique-Xique, na Bahia. Com a revitalização, eles perderão esses espaços.

Qual é a sua opinião sobre a afirmação do presidente Lula, em maio, de que os usineiros de cana são “uns heróis”?

Heróis são os cortadores de cana, que levam uma vida quase de escravo, e não os donos da terra. Por que o presidente Bush veio a São Paulo e não foi a Brasília? Porque os Estados Unidos sabem que o interior de São Paulo sempre teve culturas agronômicas importantes, hoje controla as maiores plantações de cana-de-açúcar do Brasil e que o etanol de cana vem sendo usado nos carros como combustível. Eles não têm esse knowhow. Na verdade, os Estados Unidos precisavam incentivar o Brasil a ampliar sua área canavieira para poder vender mais tarde. Quem vai controlar o preço depois? Eles, é claro.

O que pode acontecer em termos ambientais se o governo incentivar a produção de cana para depois produzir etanol?

É simples. Se o governo facilitar, a cana-de-açúcar será o mais novo produto a tentar se estabelecer na Amazônia. Sempre que se deseja ampliar as fronteiras agrícolas do país se fala na Amazônia. É como se lá houvesse um solo polivalente. Se o preço do etanol subir, vão tentar fazer novas penetrações na floresta. Além da agropecuária, dos madeireiros, dos loteadores e dos plantadores de soja, a Amazônia também poderá ter daqui a algum tempo os cultivadores de cana. Será que ela resiste?

por Dante Grecco
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL

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