Aziz
Nacib Ab’Sáber - Opinião divergente
Aziz
Nacib Ab'Saber tem cerca de 300 artigos publicados, escreveu oito livros e deu
aulas em várias universidades
Desde
que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) divulgou seu
terceiro relatório, em maio, as discussões sobre o aquecimento global pegaram
fogo. Alguns cientistas afirmaram que o painel da ONU foi cauteloso demais – o
futuro do planeta pode ser ainda mais sombrio. Outros discordam dessas
conclusões e advogam contra o exagero e o alarmismo. Nesse time joga o geógrafo
brasileiroAzizNacib Ab’Sáber. “É claro que não nego o aquecimento global. Mas
há muito desconhecimento sobre como suas conseqüências podem afetar o Brasil”,
adverte ele. Formado em geografia pela USP em 1944, especialista em
geomorfologia e considerado um dos mais importantes ambientalistas do país, o
professorAzizconhece como poucos a paisagem natural do Brasil e suas relações
com o clima. Às vésperas de completar 83 anos, tem cerca de 300 artigos
publicados, escreveu oito livros, deu aulas em várias universidades e, entre
outros cargos na academia, foi presidente executivo da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) entre 1994 e 1995. Mesmo aposentado, todas as
noites comparece ao Instituto de Estudos Avançados da USP, onde é professor
honorário, e vibra como um pesquisador iniciante ao mostrar mapas e imagens do
Nordeste feitas por satélite.
Por que o senhor
afirma que o aquecimento global não destruirá a Amazônia nem a mata Atlântica?
Houve
muito alarmismo nessa questão. Embora algumas afirmações tenham sido feitas por
bons cientistas,muitas conclusões foram divulgadas de forma equivocada. Logo me
irritou a afirmação de que a Amazônia desaparecerá e o cerrado tomará conta de
tudo. Como há décadas estudo o problema dasflutuações climáticas e o jogo do
posicionamento parcial dos grandes domínios geográficos brasileiros, senti-me
ofendido culturalmente. Não havia ciência na afirmação.
Sua teoria envolve uma
mudança fundamental nas correntes marítimas, certo?
Em
nosso litoral existe a chamada corrente tropical sulbrasileira. É uma corrente
de águas quentes que desce desde o Nordeste oriental até o sudeste de Santa
Catarina. Essa corrente tem um contrafluxo representado pela corrente das
Malvinas, ou Falklands, que vem da Argentina, é composta de águas muito frias e
segue quase até o Rio Grande do Sul. Uma das conseqüências do aquecimento
global é que essa corrente tropical sul-brasileira ficará mais larga, ocupará
uma área mais afastada da costa e irá avançar mais para o sul do Brasil sobre a
corrente fria. Portanto, essa corrente quente levará mais calor para as regiões
localizadas entre a Argentina, o Uruguai e o Rio Grande do Sul, que hoje vivem
um conflito entre águas frias e quentes. Com essa massa de água quente que
chegará, a evaporação será mais intensa. Podemos deduzir que vai haver maior
penetração de umidade no continente.
O que isso
significará?
Com
maior umidade, choverá mais. Por isso, nesse caso o aquecimento global não
representará um aspecto negativo do ponto de vista da climatologia da fachada
atlântica do Brasil. Portanto, não se pode dizer que a mata Atlântica será
atingida por ele. Ao contrário. A tendência é que tanto a mata Atlântica como a
Amazônia cresçam, e não que sejam reduzidas. Isso já aconteceu antigamente, num
período entre 6 mil e 5 mil anos atrás chamado de optimum climático.Naquela
época também houve um aquecimento do planeta, mas foi natural, e não causado
pelo acúmulo dos gases na atmosfera, como hoje.
O que houve naquela
época?
Entre
20 mil e 12 mil anos atrás, o planeta passou por um período de glaciação.
Devido ao congelamento de águas marinhas nos pólos Norte e Sul, o nível dos
oceanos era cerca de 90 metros mais baixo do que o registrado hoje. Depois
disso, por volta de 11 mil anos atrás, houve um período de transição entre um
clima frio e um mais ameno e ocorreu um ligeiro aquecimento da Terra. O frio
intenso deu lugar a um clima mais tropical, como ocorria antes da glaciação.
Com isso, as grandes manchas florestais, que haviam ficado distantes umas das
outras naquele clima frio e seco, cresceram e se emendaram. A esse processo,
que aconteceu principalmente na costa brasileira, eu dei o nome de
retropicalização.
E o que aconteceu
depois?
O
planeta continuou a esquentar, embora houvesse variações de temperatura para
cima ou para baixo. Com isso, boa parte do gelo que estava concentrado nas
regiões polares se derreteu. O auge desse aquecimento se deu entre 5 mil e 6
mil atrás, no optimum climático. O aquecimento foi tal que o nível dos oceanos
se elevou cerca de 2,90 metros acima do registrado hoje. Em minha
interpretação, quando o mar subiu em conseqüência daquele aquecimento do
planeta, ele trouxe mais umidade para dentro do continente.Houve mais chuvas, o
que favoreceu a continuidade das florestas. O optimum é uma fase da história
climática do mundo que vários cientistas e o próprio IPCC não consideraram.
Como naquele período nem a mata Atlântica nem a Amazônia desapareceram do mapa,
não é certo dizer que até 2100 a Amazônia vai virar cerrado. O problema não é o
que acontecerá daqui a 90 anos, e sim o que ocorre hoje.
Por quê?
A
região amazônica tem 4 milhões de quilômetros quadrados e, em menos de 25 anos,
perdeu 500 mil quilômetros quadrados de florestas. Isso significa que uma área
equivalente a duas vezes o estado de São Paulo já foi destruída. É muita coisa.
Ou seja, hoje a Amazônia está tendo problemas de savanização devido à ação
antrópica. Ocorrem desmatamentos ao longo das rodovias, dentro das selvas e
junto das chamadas espinhelas de peixe, nome que os amazônidas dão aos imensos
quarteirões ocupados por especuladores, os quais se mudaram de lá e venderam
pedaços da mata a pessoas de muito longe que imaginaram ter uma fazendinha na
região. Depois, essas pessoas liberaram as terras para os madeireiros, que
arrasaram com tudo.
O senhor tem alguma
outra divergência em relação ao que foi divulgado sobre o aquecimento global?
Sim.
Uma coisa é o aquecimento global, outra é sua continuidade ou não ao longo dos
anos. Os cientistas dizem que vai ser sempre assim. O planeta ficará cada vez
mais quente. Com isso, o calor provocará mais derretimento de geleiras, o que
aumentará ainda mais o nível do mar. E assim sucessivamente. Esse raciocínio é
muito simplista. Não temos comosabernos próximos anos como o mar vai subir.
Portanto, também não temos como avaliar quanto ele irá se elevar daqui a 100 ou
200 anos.Nesse período os continentes podem até abaixar mais e as águas do mar,
inundar zonas costeiras bem maiores. Ou o contrário. Eles podem subir, como
ocorreu depois do Plioceno. E com isso o mar irá recuar.Didaticamente, eu fiz
os cálculos para dez, 50 e 100 anos. Depois parei.Ainda há a questão das
diferenças entre as marés baixa e alta. Na costa do Maranhão, por exemplo, essa
diferença é de 8 metros. Tudo isso não foi considerado.
Mas não se pode negar
que uma das piores conseqüências do aquecimento global será o aumento do nível
das águas do mar.
A
ascensão do nível das águas dos oceanos provocada pelo derretimento das
geleiras polares e das geleiras das altas montanhas vai criar graves problemas
na zona costeira do Brasil. São 8 mil quilômetros de litoral. A água deverá invadir
diversas cidades litorâneas, como Santos, Rio de Janeiro e Recife, entre
outras, criando mini-Venezas. Será preciso fazer pontes e diques na frente das
praias e nas margens dos rios. A água vai também tomar conta das barras dos
rios e alagar planícies rasas e manguezais, com prejuízos ambientais e
econômicos.
O que o senhor sugere,
diante do problema atual?
Disso
tudo eu tirei uma conclusão. Primeiro, é preciso reduzir a emissão de gases
particulados na atmosfera para mitigar o efeito estufa. Que fique bem claro que
eu não discuto o aquecimento global. Depois, devem-se acompanhar os fatos ao
longo de um certo espaço de tempo para avaliar todas as variações. A seguir, é
fundamental um bom planejamento para evitar maiores conseqüências sobre as regiões
costeiras, que serão as áreas mais atingidas. O extremo sul do Brasil, por
exemplo, vai ser pouco afetado, já que, com a suspensão das águas, deve
acontecer o que ocorreu durante o optimum climático. A corrente marítima quente
irá descer mais para o sul, levando maior umidade e, conseqüentemente, mais
chuva para o interior do território.
Em junho, iniciaram-se
as obras da transposição das águas do rio São Francisco, em Cabrobó, em
Pernambuco. O senhor crê que ela vai matar a sede da população do Nordeste
seco?
Fala-se
que essa obra beneficiará cerca de 12 milhões de pessoas. Não acredito. Ela vai
beneficiar principalmente os pecuaristas. O mais triste é que os donos das
fazendas nem moram lá, mas sim em capitais como Fortaleza e Recife. A região do
São Francisco é muito complexa.No Nordeste chove muito no verão e pouco no
inverno, embora digam o contrário. É evidente que o Nordeste seco vai precisar
de mais água quando o rio São Francisco, que passa em grande parte pelo cerrado
de Minas Gerais e da Bahia, estiver mais baixo. Será justamente nessa época que
o rio precisará jogar mais água para os eixos norte e leste que serão
construídos até ela cair no açude de Orós. Aí surge um problema. As águas do
São Francisco são poluídas e vão se encontrar com águas salinizadas do próprio
açude. Ou seja, nessa época será preciso fazer uma transposição de águas maior
do que a planejada.
Como assim?
Quem
é a favor da transposição diz que o rio vai perder apenas 1,4% de suas águas
após o término das obras.Mas é claro que no futuro essa porcentagem deve
aumentar. Ou seja, serão transferidas mais águas do rio para os futuros eixos
que vão ser construídos. Outro problema será manter as usinas hidrelétricas de
Paulo Afonso, Itaparica e Xingó funcionando. Então, a época em que o rio
receberá menos água vai ser a mesma em que ele deverá enviar águas para além da
chapada do Araripe. Isso é um contra-senso, pois, quando estivesse chovendo lá,
não seria preciso enviar água para a mesma região.
Quais são os impactos
ambientais que a transposição pode causar?
Talvez
o principal seja a poluição das águas. Vários afluentes do São Francisco vêm de
Belo Horizonte, uma das maiores cidades do Brasil, e passam pela região
industrial sidero-metalúrgica. Um deles é o rio das Velhas, por exemplo.O São
Francisco tem 2170 quilômetros de extensão. Imagine a poluição que ele carrega
nessa distância. Técnicos disseram que iam revitalizá-lo antes de fazer a
transposição.Outro erro, pois não se pensou naqueles que têm só as margens do
rio para plantar, como na zona semiárida das cidades de Ibotirama, Barra e
Xique-Xique, na Bahia. Com a revitalização, eles perderão esses espaços.
Qual é a sua opinião
sobre a afirmação do presidente Lula, em maio, de que os usineiros de cana são
“uns heróis”?
Heróis
são os cortadores de cana, que levam uma vida quase de escravo, e não os donos
da terra. Por que o presidente Bush veio a São Paulo e não foi a Brasília?
Porque os Estados Unidos sabem que o interior de São Paulo sempre teve culturas
agronômicas importantes, hoje controla as maiores plantações de cana-de-açúcar
do Brasil e que o etanol de cana vem sendo usado nos carros como combustível.
Eles não têm esse knowhow. Na verdade, os Estados Unidos precisavam incentivar
o Brasil a ampliar sua área canavieira para poder vender mais tarde. Quem vai
controlar o preço depois? Eles, é claro.
O que pode acontecer
em termos ambientais se o governo incentivar a produção de cana para depois
produzir etanol?
É
simples. Se o governo facilitar, a cana-de-açúcar será o mais novo produto a
tentar se estabelecer na Amazônia. Sempre que se deseja ampliar as fronteiras
agrícolas do país se fala na Amazônia. É como se lá houvesse um solo
polivalente. Se o preço do etanol subir, vão tentar fazer novas penetrações na
floresta. Além da agropecuária, dos madeireiros, dos loteadores e dos
plantadores de soja, a Amazônia também poderá ter daqui a algum tempo os cultivadores
de cana. Será que ela resiste?
por
Dante Grecco
Fonte:
NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL